A maioria dos povos indígenas associa sua
música ao universo transcendente e mágico, sendo empregada em todos os rituais
religiosos. A música indígena é ligada desde suas origens imemoriais a mitos fundadores e usada com
finalidades de socialização, culto, ligação com os
ancestrais, exorcismo, magia e cura. É
importante também nos ritos catárticos, quando a música "ao trabalhar
com proporções, repetições e variações, instaura o conflito ao mesmo tempo em
que o mantém sob controle".
Para alguns povos a música foi um presente
dos deuses, entristecidos com o silêncio que
imperava no mundo dos humanos. Para outros, a música é tida como originária do
mundo dos sonhos, onde vivem os animais míticos e os ancestrais. Ali é
conhecida pelas pessoas sem espírito, aquelas que por algum motivo
estiveram no limiar da morte e de lá retornaram, tornando-se introdutoras de
novas melodias após esse contato com o mundo do além. Menos dramática e mais
comumente, a criação de novas músicas se deve aos pajés, que as intuem em seus transes onde estabelecem contato com
deuses e ancestrais, ou aos guerreiros mais distinguidos da aldeia, que sonham
com elas.
A sua música tem definido caráter
socializador, estando presente em festividades grupais e na esfera privada,
"sendo um elemento fundamental do processo de construção do mundo social e
conceitual, e não como um mero epifenômeno ou reflexo deste".[4] As relações sociais são
assinaladas musicalmente, delimitando, por exemplo, faixas etárias, status
social, estados afetivos, gêneros sexuais, individualidades e grupos. Por fim,
o canto e a dança "cumprem também um papel fisiológico na própria constituição dos estados psíquicos, atualizando a experiência dos
eventos míticos".[5] Nesse sentido social, a música
indígena parece ser predominantemente coletiva, sendo que os casos de cantores
solitários ou de estruturas melódicas mais variadas são considerados, por
alguns, influências de outras culturas, em muitos casos africanas.
A música indígena, no entender de Ana Rogers,
é acima de tudo "qualitativa, no sentido que privilegia as qualidades
sonoras em detrimento da dança infinita das permutações vazias e desencarnadas
das notas singulares e dos modos específicos, próprios ao tonalismo pós-barroco.
Ao contrário.... na música indígena (nem propriamente modal, muito menos tonal
no sentido moderno), o timbre, a pulsação e a forma de execução, a postura dos
músicos de um modo geral, ocupam parte do lugar dos modos na
música modal. Tudo isso e muito mais (o contexto social e cosmológico no qual
ela é executada) informam sobre os afetos e a qualidade dessa produção
sonora".
Rituais
Índios cantando no Kuarup.
Uma das bases do sistema social indígena
são os grandes rituais como o Quarup, o Yawari, o Iamurikumã e os rituais de iniciação. Estes cerimoniais, dos quais muitos
são intertribais, funcionam como uma língua franca de comunicação não-verbal
entre etnias diversas. Segundo Franchetto e Basso, "as festas costuram a
sociedade alto-xinguana, um circuito cerimonial que veicula alianças e metaboliza
conflitos, absorvendo ritualmente a alteridade.... Esta visão do ritual
intertribal como linguagem franca coloca a música no cerne do sistema xinguano,
considerando-se que estes rituais são, por excelência, rituais musicais".[6]
Há rigorosas prescrições para uso de
determinadas melodias e para quem será o intérprete, e para quando serão
executadas. Há músicas e instrumentos exclusivos dos homens, outros só de
mulheres, ou melodias cantadas apenas em um certo rito ou com uma função
específica. Em diversas etnias existe um ciclo de rituais de grande importância
relacionados às flautas sagradas, sendo realizados apenas por homens e com um
instrumental cuja visão é vedada às mulheres.
A interpretação musical pode ser cercada
de rituais menores, propiciatórios ou facilitadores, como a pintura de uma
linha sobre o ouvido e lábio para facilitar o aprendizado de canções, colocar um
ramo de enodoréu à orelha para
não esquecer a melodia, e uma série de outras praxes.[7]
Sistema, simbologia e gêneros
Não seguindo o sistema tonal do ocidente,
a sua sonoridade apresenta uma enorme sutileza e complexidade especialmente
nos timbres e nas alturas, sendo de difícil
transcrição para a partitura ocidental. Não existe
desenvolvimento de polifonia ou harmonia reais (num
sentido ocidental), sendo de uma espécie monódica ou no
máximo heterofônica, com alguns exemplos de
composição antifonal. Não existe notação, e o acervo de
composições antigas é transmitido pela prática continuada entre as gerações.[1]
A voz e o canto são dominantes na música indígena, mas existe um muito variado
instrumental de apoio e séries de peças orquestrais autônomas. Na maioria dos
casos a música é associada à dança ritual.
O ritmo é fluente, em
geral, binário ou ternário, às vezes alternado em um mesmo verso. Muitas vezes
sua música não está baseada na existência de uma unidade de tempo (pulso)
rígida, gerando uma contínua flutuação do pulso.[1] A estrutura das composições
também diverge da ocidental, e é enormemente variada, dependendo bastante do
texto que ilustra, tendo as repetições e variações um papel central.
Existem canções para praticamente todos
os momentos e atividades da vida, sendo praticadas em festas para homenagear os
mortos, como canções para crianças, em festas sazonais e festas guerreiras, em
ritos de passagem, no culto dos espíritos e ancestrais, e nas festas de
congraçamento entre as tribos.[8]
No âmbito familiar o repertório vocal é
pequeno; entre os clãs de sangue as suítes orquestrais, que usualmente são
propriedade de grupos familiares, são executadas também vocalmente, em uma
espécie de solfejo; nos grandes ciclos dançados voz e
instrumentos adquirem igual importância, e por fim, como ápice da vocalidade,
os cantos de guerra são executados a capella.
As diferentes texturas musicais são
relacionadas às esferas sociais: no nível coletivo geral há uma maior precisão
de alturas e intervalos; no nível dos clãs o timbre é preponderante em relação
às faixas de altura e à massa sonora, finalmente, nos ciclos dançados, a
textura é mais densa e utiliza nítidas oposições grave-agudo sem intervalos de
passagem. "Ocorre, portanto, uma progressão acústica que acompanha a
complexificação dos níveis sociais".[1]
Além disso, o som é relacionado à
espacialidade física. "As canções são um caminho, nomeiam os lugares, e
articulam a cartografia da floresta ao movimento dos seus habitantes, além de
estarem ligadas ao mundo espiritual dos pássaros".
Oralidade
A cultura indígena é basicamente oral, nela
a música é uma extensão da fala, e seus limites às vezes são sutis e
imprecisos. Um discurso pode acabar em canto, ou o inverso.[8] Dentre as espécies vocais,
existem subdivisões de acordo com o objetivo de cada canção:
·
Narrativas: falas com diferentes graus de
formalidade, desde as cotidianas entoadas por qualquer pessoa até as falas
restritas a homens adultos executadas na praça central.
·
Instrutivas: narrações veiculando regras,
costumes e tradições, transmitidas através do canto ou prédica emocional pelos
adultos a crianças, ou relatando de expedições de caça e narrativas míticas. A
vocalização é muito flexível e expressiva, e o cantor serve-se de recursos
tonais, timbrísticos, fonéticos e rítmicos para dar sentido a seu enunciado.
·
Canções: identificadas por seus conteúdos textuais,
os quais é frequente se referirem a algum animal e a seu comportamento, sendo
que na ação ritual as identidades do cantor e do animal são combinadas. Muitas
se referem ao amor e ao prazer sexual de modo desinibido, feliz e direto.
Frequentemente se transita entre a cantoria e a narrativa gestualizada
não-musical.
·
Invocações: executadas, geralmente em voz
baixa, com fins práticos ou medicinais.